“Uma sombra não é, com certeza, nada
daquilo a que habitualmente chamamos sombra. Quando aqui dizemos sombra, não
queremos dizer, obviamente, sombra. Não sugerimos que se trata da:
DICIONÁRIO
Parte de uma superfície
Que deixou de receber luz
Porque entre ela e o foco luminoso
Se interpôs
Um corpo opaco.
Não se encontrou ainda um dicionário
que contenha todas as definições possíveis de uma palavra. Todas as definições
íntimas, todas as definições mudas, todas as definições irónicas, todas as
definições implícitas. À sombra do próprio dicionário existem todos os outros
usos da palavra sombra. Falar de uma integral definição de sombra é falar do
próprio dicionário:
_Não
há nenhuma palavra que defina a palavra palavra;
_A palavra ser por si só, pouco
ou nada é;
_
Não há clareza acerca da claridade
_Definição não chega para se
definir;
_O
indizível nunca deveria ser dito;
_nem
o inenarrável, narrado;
_A
palavra sombra pode nunca chegar a
ter a audácia de assumir a sua própria sombra;
_...e
em que idioma se debate a linguagem?
E
a sombra é, portanto, e justamente,
isso.
Mas sempre, incluso, o seu oposto.
É o espaço que se gera quando luz e
obscuridade passam a ser uma e a mesma coisa; que o igual e o desigual possam
originar-se na mesma fonte; que entre mentira e ficção não há senão uma
variação de grau, intenção, gesto. Que entre um Não e um Sim vai apenas um pouco de boa –
vontade:
MULHER
Não.
HOMEM
[abraça-a por detrás e desliza a mão no seu seio direito]
Vá lá...
Como dois movimentos de dança
idênticos, mas em direções opostas.
Ao dizer que Ella vê sombras,
não significa que ela veja as
sombras. Por ela as ver, não quer
dizer que elas sejam visíveis. Este é apenas mais um caso em que é cómodo dizer
que ela as vê mas onde a palavra visão é usada apenas como metáfora para
um sentido mais nomeável, uma espécie de intuição. Mas uma intuição que faz
mais que intuir, uma intuição inequívoca, perfuradora, cauta, hábil, uma intuição
que não duvida, enfim, uma intuição que
chega mesmo a ver. Não como agora se
dão a ver estas palavras, impressas nesta folha. É muito mais um ver todas as palavras que tentaram fazer
parte deste texto e não chegam a emergir ao entendimento de quem o escreve.
A sombra inclui as palavras que impressas a branco sobre fundo
branco, como estas:
Palavras
que não deixam de lá estar, mas que ao assumirmos que branco sobre branco não
se lê, assumimos que alguns sentimentos não se demonstram. Ignoramos essas
palavras porque são obscenas, porque são de mau gosto, porque não respeitam o
novo acordo ortográfico, porque estão em idiomas que nunca aprendemos,
porque evocam ocasiões das nossas vidas que preferimos não recordar, porque são
demasiado íntimas, ou biográficas, e deixam quem as escreve num estado de
ingovernável exposição:
MULHER-QUE-ESCREVE
Se escrever isto aqui
Ainda vais gostar de mim?
Pomo-las de
lado por não terem a ver com a história, porque confundem ainda mais o leitor
dedicado, porque não são literatura, ou porque são literatura de outro e há que
respeitar os direitos de autor:
MULHER-QUE-LÊ
I close my eyes and all the
world falls dead
I think i made you up inside my
head
Mas as
palavras e as suas origens só perturbam, nesta coisa do ser, do ser sido, do
ser-se. Assim será. Pois é. Já foi.
É que até a palavra ser , por si
só, pouco ou nada é
Até a palavra ser precisa de um
corpo. Que a transporte. No mundo.
E a partir do momento em que há
um corpo,. Lá está
Há uma sombra:
Escuro" pp.191-195
(primeiro fim de semana de 2014. CHOVE.A ler "O lago avesso" )
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