“Em face da sua imagem ou da sua sombra, o homem
realiza um dia o encontro decisivo com os seus limites. A aventura misteriosa
de Narciso repete-se desde a infância em frente de cada espelho. Gostaríamos de
nos tocar do lado de lá sem quebrar o vidro ou turvar a água. E como Peter
Schlemmil pouco importaria vender a sombra ao Diabo, e com isso o tempo se
detivesse sobre o nosso rosto e pudéssemos ser, fosse um só instante, a absurda
criatura imóvel e transparente que nos sonhamos.
A aventura é impossível pois a imagem e a sombra
são reais. Isso significa que um mundo nos cerca, nos divide e nos limita.
Jamais seremos esse que pode ver-se face a face. Mas o jogo é demasiado sério
para o perdermos ao primeiro gesto. Se não nos podemos olhar procuremos entre
os monstros, os demónios e os deuses que criamos, esse rosto impassível que o
vento e a chuva de cada dia não nos consentem.
Foi assim que o encontro com um monstro nos
ofereceu aquilo que as divindades excessivamente magníficas e as potências
infernais não nos puderam dar: a expressão mais rara dum ser que não chega ao
fim dos próprios braços, como é um homem. É impossível reconhecer um homem
em Anúbis de focinho de chacal ou uma
mulher em Ísis, a virgem-mãe da face de lua. Mas é fácil reconhecê-lo nesse ser
ambíguo que os antigos Egípcios talharam na rocha do deserto e os Gregos ágeis
deixaram errar perigosamente pelos caminhos de Tebas e Corinto . Espírito da
Terra capaz de romper através da vida obscura da inércia animal para oferecer
uma face de Deus ao apelo universal da luz, a Esfinge é encarnação perfeita da
ambiguidade radical da situação humana. E ao mesmo tempo a realização plástica
mais concreta do acto original do homem: a poesia.”
Lourenço,
E.,2003:27, Tempo e Poesia. Gradiva.
Comentários
É um facto. A poesia, sempre