"A mãe insiste para que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá cabo de tudo, umas horas e a carne começa a esverdear, se a ponho na geleira fica seca como uma sola. A mãe fala como se hoje à noite não fossemos apanhar o avião para a metrópole, como se amanhã pudéssemos comer as sobras da carne assada dentro do pão, no intervalo grande do liceu. Deixa-me, mulher. Ao afastar a travessa o pai derruba a cesta do pão. A mãe endireita-a e ajeita as côdeas com o mesmo cuidado com que todas as manhãs ordena os comprimidos antes de os tomar. O pai não era assim antes de isto ter começado. Isto são os tiros que se ouvem no bairro acima do nosso. E as nossas quatro malas por fechar na sala."
Dulce Maria Cardoso.
O retorno. 2012:7
Confesso que voei para o baú das minhas memórias e da minha vinda para a metrópole. Não tão penoso, felizmente não estive em nenhum hotel como este livro descreve, nem tive ou senti grandes dores, mas muitas vezes recordo-me do olhar dos meus pais. Um relato do outro lado. O olhar de quem chega. Um excelente documento de uma histórias que é feita com todos.
DMC escreve de maneira muito particular.Entre a forma como nos descreve o ambiente até à pontuação, é distinta esta forma de aglomerar ideias e palavras. É fascinante a forma como se socorre da pontuação. Como entre virgulas se pontuam enormes e fascinantes diálogos.
Até pode ser um pouco cansativa esta técnica porque nos abriga a uma leitura atenta e não descontraída.Não de deve ler de uma assentada, mesmo que depois das 3 ou 4 primeiras páginas fiquemos agarrados à narrativa da autora.
O tema é abordado de forma séria e não nos deixa descontrair. A DMC não permite que desliguemos e tomemos uma cerveja. Ou lemos ou saboreamos a cerveja. A essência humana passa ali disfarçada. O que é ser pessoa não se dissocia do percurso da pessoa. As marcas deixadas são profundas. Os tempos conturbados, como se lê tantas vezes no livro, entre um comentário sério e duro e alguma comicidade (assim li).
Um olhar bem diferente dos Cadernos da Isabela. Uma leitura dura mesmo que numa escrita quase suave sem ser descontraída.
Gostei.
Comentários
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Um livro que me fez bem.
bjinho, sua retornada