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Porque é que as coisas se desarrumam?

.

Filha: Papá, porque é que as coisas se desarrumam?

Pai: O que é que queres dizer com isso? Coisas? Se desarrumam?

Filha: Bem, as pessoas gastam muitíssimo tempo a arrumar as coisas, mas nunca parece que gastem tempo a desarruma-las. As coisas parece que de desarrumam por si próprias. E depois as pessoas têm de as arrumar outra vez.

Pai: Mas as coisas desarrumam-se se tu não lhes tocares?

Filha: Não, Não se ninguém lhes tocar. Mas, se tu lhes tocares - ou se alguém lhes tocar - , elas desarrumam-se ainda mais se não for eu a tocar-lhes.

Pai: Pois é ! é por isso que eu bem tento evitar que mexas nas coisas da minha secretária. Porque as minhas coisas ficam ainda mais desarrumadas se alguém que não seja eu lhes mexer.

Filha: Mas as pessoas desarrumam sempre as coisas das pessoas ? Porque é que fazem isso, pai?

Pai: Bem espera um pouco. Não é assim tão simples. Primeiro que tudo, que queres dizer com “desarrumar” ?

Filha: Quero dizer que não consigo encontrar as coisas, e portanto parece tudo desarrumado. E como quando não está nada no lugar certo .

Pai: Bom, mas tens a certeza de que com “desarrumado” queres dizer o mesmo que qualquer outra pessoa?

Filha: Mas, pai, claro que tenho a certeza, porque não sou uma pessoas muito arrumada e, se eu disser que as coisas estão desarrumadas, bom, tenho a certeza de que toda a gente concorda comigo.

Pai: Pronto, está bem, mas achas que queres dizer o mesmo com “arrumado” que as outras pessoas?Se a mãe arrumar as tuas cosas, sabes encontrá-las?

Filha: Bom…algumas vezes, porque, sabes, eu sei onde ela põe as coisas quando faz arrumações.

Pai: Sim, também tento evitar que ela me arrume a minha secretária. Tenho a certeza de que eu e ela não queremos significar a mesma coisa quando dizemos desarrumação.

Filha: pai, nós os dois queremos significar a mesma coisa quando dizemos “arrumado”?

Pai: Duvido, minha querida, duvido.

Filha: mas, pai, não é engraçado que toda a gente queira significar o mesmo quando diz “desarrumado”, mas toda a gente queira significar coisas diferentes quando diz “arrumado”?. Mas “arrumado” é o contráro de “desarrumado”, não é?

Pai: Agora começamos a entrar em perguntas mais difíceis. Vamos lá ver isso outra vez. Tu perguntaste: “porque é que as coisas se desarrumam?” Já conseguimos perceber uma ou duas coisas – vamos mudar a pergunta para : “porque é que as coisas ficam num estado a que a Catarina chama “desarrumadas”? Percebeste porque é que eu quis fazer esta alteração?

Filha: …Sim, penso que sim, porque, se quero significar uma coisa especial quando digo “arrumado”, então alguns dos outros “arrumados” das outras pessoas parecer-me-ão “desarrumados” a mim, mesmo que todos concordemos a respeito daquilo a que chamamos “desarrumado”.

Pai: Exacto. Deixa ver agora a que é que tu chamas “arrumado”. Quando a tua caixa de aguarelas está arrumada, qual é o sitio dela?

Filha: Aqui no fim de esta prateleira

Pai: Bem , e se estivesse noutro sitio qualquer?

Filha: Não estaria arrumada

Pai: E se fosse no outro extremo da prateleira, aqui’ nesta posição?

Filha: Não estaria arrumada

Pai: E se fosse no outro extremo da prateleira, aqui? Nesta posição?

Filha: Não é o sitio dela, e de qualquer maneira teriade star direita , e não assim de esguelha como tu a puseste

Pai: Oh, no sitio certo e direita

Filha: sim

Pai: Bem isso quer dizer que há muitos poucos sítios onde a tua caixa de aguarelas pode ser arrumada?

Filha: Só um sitio

Pai: Não muito pouco sítios. E o urso, e a tua boneca e o Feiticeiro de oz? e a tua camisola e os teus sapatos? É o mesmo que todas as coisas, não é? Cada coisa tem muitos pouco sítios para estar arrumada?

Filha: Sim, pai, mas o Feiticeiro de Oz pode estar em qualquer sitio nesta prateleira. E sabes que mais, pai não gosto, não gosto mesmo nada quando os meus livros se misturam com os teus e com os da mãe

Pai: Eu sei (Pausa)

Filha. Pai, não acabaste. Porque é que as minhas coisas acabam da maneira a que chamo “desarrumadas” ?

Pai: Mas eu tinha acabado. É exactamente porque Há mais maneiras a que tu chamas “desarrumado” do que as que chamas “arrumadas”.

Filha: Mas isso não é razão para que …

Pai: Mas é, é. É a razão real , e a única, e uma razão muito importante

Filha: oh Pai, pára lá com isso…

Pai: Não, não estou a brincar. Essa é a razão e toda a ciência depende dessa razão. […]

Baston, Gregory.[1996(1972)]. Metadiálogos. Editora Gradiva

Comentários

cs disse…
mfc

excelente lição estes diálogos entre o Baston e a filha.Filosofia assim até parece fácil :))
F disse…
Pois. Nem me falem em conceitos destes!!
Por ter a necessidade da "arrumação", já caí na asneira de arrumar as coisas dos outros e de ser acusada de as ter desarrumado.
O problema é quando os outros, pensando que arrumaram as suas coisas e não as encontram, e eu, que reparei nelas, costumo saber onde elas estão arrumadas (desarrumadas pelos outros)!
:-)
cs disse…
F

Joga no Boavista??? (brinco)
F disse…
Não, mas moro perto!
:-)

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